FERNANDO MARTINHO - Coletivo Paralaxis - "Sobrados da Zona Oeste"
Minha mãe, dona Avany Cavalcanti, sempre dizia: "os espigões estão dominando a cidade e daqui a pouco vento e casa vão ser coisas do passado aqui em Recife"...
Infelizmente ela previa o que atualmente tem se confirmado em algumas cidades do Brasil, como por exemplo em Recife e São Paulo.
Em Recife, no início da década de 1920, o sociólogo, antropólogo, ensaísta e pensador social Gilberto Freyre volta de seus estudos realizados nos Estados Unidos e na Europa e entra em choque quando encontra após cinco anos de sua ausência uma cidade em reforma, com seu patrimônio, ruas, praças, casas sendo destroçados pelo que ele chamaria de "excesso de urbanização". Esta mudança estrutural das cidades ocorreu também em outros lugares do mundo, como em Paris, por exemplo.
A professora Helouise Costa em seu livro "A Fotografia Moderna no Brasil" cita um trecho do artigo de Wilson Coutinho publicado no Jornal do Brasil de 08 de abril de 1984 "Atget, um clássico da fotografia moderna" e comenta:
“O caso das reformas urbanas de Paris, levados a cabo por Hausmann, é extremamente representativo. Napoleão III, por ocasião da abertura dos boulevards, decretou uma lei que institucionalizava a documentação fotográfica como um serviço de utilidade pública. A destruição da cidade incomodou os amantes de Paris como os homens do patrimônio. A lei oferecia francos a quem fotografasse algum aspecto das ruas de Paris, seus monumentos e logradouros, alguns que seriam devorados pela reforma urbana de Napoleão III, fotos estas que eram compradas pela municipalidade. Outro comércio era a própria adoração de Paris, havendo um mercado de colecionadores que se dedicavam a possuir em 18x24 cm, tamanho das fotos da época, pedaços da velha cidade que estava prestes a desaparecer”.
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Recentemente foi divulgado na imprensa pernambucana o projeto "Novo Recife" (leia-se no blog Acerto de Contas) que dentre outras transformações e ocupações desmedidas, inclui a construção de gigantes prédios na área do Cais José Estelita - uma área do centro da cidade com vista privilegiada para o encontro do rio com o mar - , que além de não colaborar para a preservação do patrimônio, execra com a possilibidade de revitalização coerente, humanizada e adequada daquela espaço do Recife Antigo.
E vê-se por todo lado obras de prédios cada vez mais altos e total descompromisso com o que ainda resta de patrimônio no país. A diferença no Brasil do período em que Gilberto Freyre se espantou com a descontrução da cidade do Recife para hoje em dia é que à época a ideia era não ter mais nada da Monarquia e sim edificações com a cara da República. E tudo o que representasse o regime anterior deveria ser destruído.
Hoje a ocupação do espaço urbano tem se dado de maneira mais trágica, pode-se afirmar, a partir do momento que a pressão de construtoras nutrem o objetivo de verticalizar as cidades em porcentagem além do necessário e ético, excluindo moradores antigos ou casas que fazem parte da história e do nascimento da memória de um lugar. É a identidade que se perde... E de forma muito mais rápida do que em qualquer outra época. Afinal é mais gente para habitar, mais gente para pagar e mais gente sem se preocupar com o que preservar de suas lembranças afetivas, incluindo o espaço onde se vive. Vale ler o excelente artigo de Cláudia Linhares Sanz no Icônica, sobre casas e sua memória e afeto.
Nesta perspectiva de observação e convivência com esta problemática, nasce o belo e apurado trabalho do fotógrafo carioca, Fernando Martinho (participa do Coletivo Paralaxis) sobre os sobrados ainda resistentes da zona oeste da cidade de São Paulo, que vai ter lançamento em livro no próximo dia 14, a partir das 19h, na Rever .
Morando em São Paulo há mais de 12 anos, desde 2010 fotografa sobrados antigos através de sua câmera digital que capta a imagem de um vidro despolido de uma Rolleyflex dando à foto o ar que ele precisa para revelar a nostalgia, a memória antiga de fachadas e casas que ainda conseguem sobreviver na vasta subida de edifïcios que invade São Paulo há alguns bons anos. "A textura do visor, as
sujeiras, arranhões e até o fato da imagem estar invertida contribuiram
para compôr a atmosfera lírica que almejava. A idéia de memória, das
lembranças, das vidas passadas, de tempo, estava tudo ali. E acho
bastante poético também, é praticamente uma ode aos sobrados", conta.
O seu objetivo é continuar fotografando os sobrados "até eles acabarem", afirma.
FERNANDO MARTINHO - Coletivo Paralaxis - "Sobrados da Zona Oeste"
"Quando
vim pra SP me surpreendi com a quantidade de casas. Imaginava a cidade
muito mais vertical. O Rio de Janeiro (zona sul) quase não tem mais casas. Fui
morar na Vila Madalena e assisti de perto as demolições e transformações
no bairro. E assim foi na cidade inteira. Hoje vejo bairros antigos
totalmente desfigurados. Aquela cultura de bairro pequeno, tranquilo se
foi. Hoje vivemos sob uma ditadura das incorporadoras imobiliárias, onde
não se valoriza nem respeita o antigo, o histórico, o público".
Nesta pesquisa quase iconográfica além de fazer uma vasta documentação fotográfica, Fernando tenta entender como se dá este projeto de urbanização que acontece na cidade por meio de sua árdua busca e olhar fotográfico investigador.
"É
controverso: as pessoas querem morar em aptos de 40 metros quadrados em
torres de vinte andares encravadas em ruas que não as comporta. A
cidade não as comporta. O sujeito vai levar 20 minutos só pra sair da
garagem do prédio. Vai acabar a cultura de bairro. Algumas empresas do ramo imobiliário vendem 'bem estar' mas não
contribuem para isso, muito pelo contrário. Sem falar que muitas, ao
meu ver, agem de modo criminoso. Por exemplo: vários vendem imóveis
de luxo e contratam (de forma totalmente ilegal e desumana) homens e
mulheres para segurarem aquelas placas-setas nas esquinas. Derrubam imóveis
tombados pelo patrimônio histórico na calada da noite. Fazem terrorismo
e ameaçam moradores de casas humildes. Enfim muita picaretagem".
"Uma cidade humanizada ela deve valorizar o coletivo. Onde existe espaço público decente, onde o pedestre seja prioridade. As pessoas devem circular por ela, devem se misturar. Segregar é desumano!"
"Eu vivi minha infância em casa e brincando na rua. Vivia em Santa Teresa, no Rio. Eram outros tempos, vivia em cima de uma goiabeira no quintal, andando de bicicleta pelas ladeiras, ia de bonde pra escola. Conhecia todas as ruas, becos, vielas e escadarias como a palma da minha mão".
"Fotografei diversas casas que já foram destruídas. Um horror! Hoje em dia a gente pisca e já derrubaram quarteirões inteiros. Já é
difícil ver o horizonte nessa cidade, imagine daqui a dez anos".
Fernando Martinho sempre se dedica a uma ideia de modo intenso e instigante. Desde que iniciou este projeto, saiu andando pelas ruas e chegava todas as vezes em nossas reuniões do Coletivo Paralaxis cansado e decepcionado com o que via. E fomos, eu, Alexandre Severo e Stefan Schmeling acompanhando aos poucos sua evolução e espanto com o que a verticalização causou a São Paulo. Muito bom ver este projeto que também pode ser tido como uma denúncia aos abusos cometidos contra o espaço urbano, contra a memória de uma cidade e contra a delicadeza que nela ainda existe. Triste perder esta delicadeza... Mas mesmo com pesar que tenhamos, as fotografias podem motivar mudanças e trazem lembranças de um tempo que já não existe mais. É quando a fotografia vira patrimônio! Felizmente e infelizmente...
Parabéns, Fernando e linda Ode aos Sobrados!! E que estas possam trazer luz a esta questão tão emergente e necessária à discussão...
O QUE: Coquetel de Lançamento do livro do Fotógrafo Fernando Martinho - COLETIVO PARALAXIS - "Sobrados da Zona Oeste"
QUANDO: Sexta-feira, 14 de dezembro
HORA: a partir das 19h
ONDE: Espaço de Estudos em Fotografia REVER - R. Artur de Azevedo, 1307 - Pinheiros - São Paulo - SP
QUEM PATROCINOU: Edital da Secretaria de Cultura do Estado (PROAC)
PUBLICADO POR: Editora Olhares
VALOR: R$ 50,00